As vidas da natureza-morta
A história também está presente nos objetos inanimados que povoam nosso cotidiano, já que eles são, frequentemente, o resultado da ação humana sobre a natureza. Quantas horas e qual quantidade de trabalho intelectual e manual, individual ou coletivo, estiveram e estão investidos na confecção dos mais vulgares objetos presentes no nosso dia a dia? E quais os significados que, em determinadas circunstâncias, a eles podem ser atribuídos? Para além dos artefatos criados, existem aqueles subtraídos à natureza, seu ambiente original, que são igualmente evocativos das histórias mais diversas.
No Ocidente, notadamente na Europa, a “natureza-morta”, ou seja, a representação artística de objetos ou seres inanimados, se estabelece como gênero independente nos séculos XVI e XVII. Parte importante desse processo se deve à Reforma Protestante promovida pelo monge alemão agostiniano Martinho Lutero (1483-1546), pois alguns dos efeitos da Reforma sobre a arte foram, justamente, a repulsa à decoração dos templos e a proibição da adoração de imagens de divindades.
Artistas flamengos e holandeses, que perderam o mecenato promovido pela Igreja, vão dedicar-se aos trabalhos decorativos, mas também evocativos do novo ambiente, pois alteram-se as relações entre o artista e sua clientela.
Sem teor que agredisse a sensibilidade protestante, flertavam com outros consumidores ao enaltecer, legoricamente, a opulência da sociedade mercantilista, a prosperidade dos comerciantes dos Países Baixos que foram responsáveis pela consolidação e popularização do gênero. Nascem, nesse período, as “Vaidades”. pinturas que nos alertam para a transitoriedade da vida: “vaidade das vaidades, tudo é vaidade” (Eclesiastes, 1:2).
Desde então, o gênero encontra seus cultores em todos os cantos do globo e em diferentes períodos e ambientes sociais. Serviu como pretexto às inovações e mesmo às revoluções estéticas, como aquelas promovidas por Paul Cézanne (1839-1906) e Georges Braque (1882-1963), ou Giorgio Morandi (1890-1964), para citar alguns expoentes da arte europeia. Entre nós, com a introdução da disciplina acadêmica no séc. XIX, o gênero ganha expressão extraordinária através da pintura do negro Estevão Silva, que morreu no Rio de Janeiro em 1891.
Provando que os objetos que são motivo da especulação estética não são silentes, mas pelo contrário, bastante loquazes, a pintura de Silva, de qualidade confirmadamente excepcional e de viés acadêmico, é caracteristicamente marcada pela condição social ocupada pelo artista, que se faz expressar nos artefatos representados em suas pinturas. São obras, em geral, de pequenas dimensões, que apresentam elementos de uma culinária modesta, gêneros obtidos em pequenas hortas enos quintais suburbanos que denunciam sua condição e lugar de classe.
Em direção contrária, na obra do notável artista Pedro Alexandrino (1856-1942), com suas pinturas de grandes dimensões, percebe-se a opulência das mesas, a rutilante transparência dos cristais, o reluzente metal cobreado ou prateado presente nas suas sedutoras representações de certa cozinha aristocrática. Os elementos dessas pinturas são, sim, distintivos de uma condição de classe, raça e gênero.
Claudinei Roberto da Silva
Curador