Tramas que o tempo não desfia

TRAMAS QUE O TEMPO NÃO DESFIA

O rosto de Nini era rosado e enrugado-
Assim envelhecem os tecidos de grande
valor, as sedas que tem séculos de vida ,
nas quais uma família inteira gastou suas
habilidades manuais, trançando com os fios
todos os seus sonhos.
Sandór Márai, As Brasas

Alexandra Ungern apresenta nesta individual trabalhos que buscam sua ancestralidade. Ainda que pareça um tema muito em voga, olhar para o passado para melhor compreender o presente é algo que está na base do entendimento de compreensões históricas e sociais dos seres humanos. E a partir da ideia de um tecido social, Ungern se vale da linguagem da apropriação em grande parte dos trabalhos apresentados. Usando materiais ou imagens que não tenham o “traço” do autor, esse índice acontece enquanto pensamento sobre algo. Penso que este algo se materializa notadamente nos tecidos, material fiado por mãos anônimas que se tornam obsoletas, onde lembranças pessoais e coletivas se mesclam como urdidura, e de forma muito precisa tem duas abordagens com característica distintas. Na série Faixas, tecidos simples, ordinários, possuem frases curtas. Estas frases não são lemas vazios, hipócritas ou positivistas; antes, são constatações e lamentos reforçados pelos rasgos e formatos irregulares como a enfatizar o esgarçamento do tecido social e o apagamento das histórias enraizadas no solo onde se nasce. Na série Entre-laços, sem título (tecidos) os tecidos tem desenhos elaborados, cores vivas, trama densa e pesada. Ainda que rasgados, esgarçados ou desgastados parecem guardar, paradoxalmente, uma certa integridade. E esta qualidade permite que eles velam objetos que reconhecemos por seus contornos. Aqui o verbo velar tem o sentido de proteger, mas também de interditar o contato, físico e visual, com o objeto que imaginamos a partir do formato sugerido. Nos trabalhos da série Caixa de afetos a forma sugerida que molda os tecidos é como um fantasma do objeto; é uma forma desmaterializada. Dialogando com estes trabalhos estão Os Pratos. Aqui a desmaterialização é de outra ordem: as imagens impressas e adesivadas reforçam a pouca “espessura” de um tempo acelerado e comprimido onde o passado nem distante está, já que tende ao apagamento, e o futuro ainda não chegou. São também impressões adesivadas os desenhos que pertencem a serie Entre-laços, sem título (adesivos) nos quais Ungern se apropria de si mesma, utilizando algumas de suas ilustrações de grossos traços negros do livro Kislány Dora. Estes desenhos saem das páginas e da condição de ilustração, ou seja, da necessidade do texto impresso para lastrear sua pertinência, e ganham uma existência mais efetiva, mais autônoma, indo para as paredes.

São as paredes que servem como suporte para o site-specific Eu adorava esse tempo e Carregando Memórias. Imagens impressas por cianotipia (um método dos primórdios da fotografia), tecidos com crochês e intervenções e pequenas caixas metálicas com fotos antigas formam um painel de reminiscências desconexas e frágeis, unidas por fios finos, leves, as vezes emaranhados. Como nossa memória. Imagens e manualidades a reforçar estas memórias que poderiam desaparecer, mas ganham sobrevida. São ainda os trabalhos que usam cianotipia que pontuam partes da exposição, dialogando com outras obras que justamente abrem mão do recurso da imagem. Desta forma, o que é reconhecível recebe uma intervenção que tende a obstruir essa condição; essas intervenções não denotam significados, índices ou outra coisa além de sua própria materialidade. É no embate com a imagem que elas adquirem relevância, “voz”. Penso que nestes trabalhos o jogo da linguagem abstração x figuração ou apropriação x autoria se apresenta mais plenamente. Claro que isso acontece por uma convivência entre as obras que não surgiu de uma hora para outra; foi necessário o tempo de decantação e sedimentação que é também o tempo da memória, da lembrança. Estas cianotipias vão construir um diálogo improvável entre obras como Banquinho (da serie Entre-laços, sem título) e quatro peças denominadas Molduras. Estas últimas são construídas com gravetos e pintadas de dourado, porém, a atividade para a qual elas foram concebidas, não é executada. O que elas emolduram é a ausência.

A denominação apropriação contém, de forma mais direta, a ação do artista que toma objetos, imagens, sons e os altera menos em sua forma, mais em sua concepção intelectual, tensionando autoria e pertinência para tornar trabalhos que se apropriam do outro e os transformam em algo que seja seu. Insisto nesse ponto, pois esta foi a derivação de linguagem estética que contemporaneamente (pelo menos dos anos setenta até hoje) mais acrescentou às discussões sobre arte. Ainda que isto não seja pouco, há outro aspecto muito relevante nestes trabalhos apresentados por Alexandra Ungern: as migrações ou deslocamentos. Ligadas, ainda que de maneira tangencial, à ancestralidade, os deslocamentos migratórios são um flagelo que acomete os viventes desde tempos distantes. Claro que o fato de que ainda aconteçam num mundo que discute inteligência artificial ou outros avanços tecno-científicos somente corroboram nosso fracasso enquanto sociedade.

Num lugar longínquo, no tempo e no espaço e, por isso mesmo, contemporâneo, alguém fia um tecido que abrigará e dará conforto à um semelhante. Neste gesto ancestral, uma repetição e uma apropriação, nossa capacidade humana dialoga com o tempo maquínico e negocia a convivência de ambos.

Pode-se buscar a ancestralidade, mas para alcança-la é necessário dar voz e escutar atentamente à quem até o eco emudeceu.

Marcelo Salles,

março, 2024